Valéria de Velasco: Sobre flores e vidas

Pra não dizer que não falei de flores, e me desculpe, Geraldo Vandré, por pegar emprestado o título de seu histórico e revolucionário canto à luta pela igualdade, vou contar uma cena que me encantou há poucos dias. Ao fazer o balão numa das entrequadras 100/300 da Asa Norte, deparei com uma mulher posando, toda sorridente e feliz, no meio do canteiro reluzente de flores amarelas do campo, enquanto o companheiro, a uma pista de distância, tentava driblar os carros que passavam para eternizar o momento na máquina digital. Como é bom morar em Brasília, pensei, sem poder parar no balão florido por conta dos carros que vinham atrás e me lembrando de outra cena que na véspera também havia me chamado a atenção.

Assim que saí de um banco na W3 Norte, no final da manhã, parei para ver a alegria de duas mulheres se esforçando para pegar as melhores frutas numa bela goiabeira que enfeitava a calçada. Pareciam duas crianças brincando, tamanha a felicidade por alcançar aquelas goiabas milagrosamente maduras e disponíveis, se oferecendo aos passantes numa espécie de homenagem a Lucio Costa, o urbanista que arquitetou a capital da República em quatro escalas — a monumental, a gregária, a residencial e a bucólica, essa última para conferir à cidade o traçado de gramados, parques e jardins que representam tanta qualidade de vida para os moradores. Obrigada, Lucio Costa, reconheci, por ter criado a possibilidade do encanto. Obrigada, Francisco Ozanam, o homem dos parques e jardins, por não deixar morrer essas possibilidades e cuidar com tanto zelo das flores e frutas da nossa capital.

Dizem que jornalista só gosta de dar notícia ruim, mas, como veem, não é bem assim. Como seria bom se pudéssemos dar todos os dias belas reportagens mostrando que as cidades que cercam o Plano Piloto também estão florindo e os moradores parando no meio dos canteiros para se deixar fotografar em meio às cores que brotam em cada estação! Mas, se faltam flores, sobram problemas, como enchentes que engolem crianças, jovens armados com revólveres .38, .32 ou pistolas de uso exclusivo das Forças Armadas, matando ou morrendo, hospitais entupidos de gente que poderia estar sendo bem-atendida em postos, e por aí vai. E como não mostrar, se o jornal existe para refletir a consciência crítica da sociedade e isso não se faz sem dissecar os dramas da população para que o poder público se toque e foque nela a sua missão? Como disse Vandré, “somos todos iguais/ braços dados ou não/ nas escolas, nas ruas/ campos, construções…” Mas ainda é preciso fazer da flor o mais forte refrão.

Fonte: Correio Braziliense

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