Correio Braziliense: Juízes burocratas

Antonio Pessoa Cardoso
Desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia

Apesar de a Constituição estabelecer que todo poder emana do povo (§ único, art. 1º), o Judiciário, como uma das três funções estatais, não se origina de manifestação popular, mas, em atenção a preceito constitucional, é constituído por bacharéis em direito, depois de aprovados em concurso de provas e títulos. Assim, é atípica a formação do Poder Judiciário.

Submetido ao certame e logrando êxito, o juiz recebe do Estado a missão honrosa, específica e única para solucionar conflitos entre os cidadãos da comunidade. A lei é rígida, quando limita a atividade do magistrado, que não poderá exercer outro cargo ou função, excetuando apenas uma de magistério, com restrições apontadas na lei. Também é impedido de dedicar-se a ação político-partidária. Até a advocacia, após aposentadoria ou exoneração, só poderá exercê-la com as restrições anotadas na lei (§ único, inc. I, art. 95 da Constituição).

A profissão exige dedicação permanente e exclusiva, além do direcionamento de toda a sua força física e intelectual para a missão de julgar. A Lei Orgânica da Magistratura proíbe terminantemente o afastamento do julgador de sua atividade, salvo para frequentar cursos de aperfeiçoamento, ainda assim pelo máximo de dois anos, para prestar serviço à Justiça Eleitoral e para exercer a presidência de associação de classe (art. 73 da lei especial).

Esta situação, dedicação exclusiva à judicatura, só pode ser mudada, através de lei complementar de iniciativa do Supremo Tribunal Federal. Portanto, portarias, resoluções ou outros atos dos tribunais não têm força legal para modificar as exigências estatuídas na lei especial. É bem claro o disposto no artigo 107 da Loman: “É vedada a convocação ou designação de juiz para exercer cargo ou função nos tribunais, ressalvada a substituição ocasional de seus integrantes”.

Entende-se a necessidade alegada pelos presidentes de tribunais, pelos corregedores etc, mas a Constituição e a Lei Orgânica proíbem tais convocações, sob o fundamento de que os magistrados não podem nem devem ser desviados da missão constitucional que é solucionar conflitos.

Para contar com assessores, profissionais com vivência na carreira, os tribunais podem chamar magistrados e promotores aposentados, além, evidentemente, de advogados. Assim procedendo não contará em seu meio com estranhos ao sistema; ao invés, terá pessoas experimentadas com a arte de julgar ou bem próximas do Judiciário.

A Folha de São Paulo publicou, recentemente, noticia dando conta de que o Tribunal de Justiça mantém 39 juízes em funções burocráticas. Destes, sete permaneceram como assessores por mais de três anos, inadmitido até mesmo pelo regimento interno do próprio tribunal paulista. Sabe-se de situações nas quais existem juízes convocados que permaneceram ou permanecem nas funções administrativas por mais de cinco anos, período no qual se desvinculam completamente da judicatura. No caso, há flagrante desrespeito à Constituição, à Lei Orgânica e ao regimento dos tribunais.

Acontece que a situação de São Paulo não é isolada, pois a prática já se tornou comum em todo o Judiciário do país. Os tribunais superiores chegam a requisitar juízes estaduais para assessorar seus membros em Brasília. Junta-se a essa ilegal requisição o fato de que muitos magistrados deixarem a atividade principal para dar aulas, fazer conferências, fazer mestrado, doutorado etc. e, então, poderá ver-se o espaço aberto.

A troca da função de julgar, imposta ao juiz quando requisitado para colocá-lo na área burocrática, causa prejuízos ao Estado, porque retira um profissional especializado na arte de julgar e passa para outra na qual não tem preparo algum. E mais: deixa sem substituto a função original. Ademais, como já se disse, a assessoria pode ser desenvolvida por magistrados e procuradores aposentados e por advogados, enquanto a judicatura é de competência exclusiva do magistrado. Ou seja, ninguém o substituirá e todos os processos que lhe foram distribuídos ficarão parados, sem julgamento.

Fonte: Correio Braziliense

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