Correio Braziliense: Mais um passo em direção à igualdade

Roberto Policarpo
Coordenador-geral do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal (Sindjus-DF)

Ao considerar que os furtos de pequeno valor não devem ser considerados crimes, o Supremo Tribunal Federal dá um passo para humanizar a Justiça. A questão central em jogo é a proporção do delito. Quem furta um pão ou um sabonete não deve ter a mesma punição daqueles que operam gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, formação de quadrilha e desvio de recursos públicos. Formalmente, o furto do pão é crime. Materialmente, não é. Esse foi o justo entendimento do Supremo a respeito do problema.

Em geral, as pessoas que cometem delitos insignificantes são movidas por extrema carência. A recente decisão do Supremo terá efeitos positivos, a começar pelo fato de que não serão deflagradas prisões a torto e a direito como forma de punição. Ao contrário do que dizem os mais conservadores, a orientação do STF não ajudará a transgredir a ordem, tampouco provocará uma regressão de valores. Na verdade, contribuirá para o aprimoramento jurisdicional e social. Além de não misturar quem furta para matar a própria fome com criminosos violentos na mesma cela, diminuindo o número de matrículas na escola do crime, o sistema penitenciário e o próprio Poder Judiciário serão desafogados. Mais economia para o Estado, mais celeridade nos julgamentos.

A manutenção de um preso custa entre R$ 1.300 e R$ 1.600 por mês. Para uma vaga no sistema prisional são necessários R$ 22 mil. Todos esses recursos poderão ser investidos em políticas sociais para mitigar as desigualdades. A Justiça deixará de gastar tempo com os ladrões de galinha, podendo focar sua atenção em causas mais relevantes.

A decisão do Supremo é uma decisão madura, que consolida o que já vinha sendo julgado no tribunal. Enquanto muitos colarinhos brancos escapam da Justiça, beneficiados pela cultura de impunidade, delitos menores costumam parar na instância mais alta do Judiciário brasileiro. Mas os ventos estão mudando. Só em 2008, pelo menos 14 casos dessa espécie foram julgados na mais alta Corte. São casos em que o princípio da insignificância deveria ser aplicado na análise da ação penal, ainda na primeira instância. No entanto, com a rolagem do problema, perde o Estado, perde a Justiça, perde o réu e perde a sociedade.

Embora a decisão do STF não seja compulsória, constitui uma mudança de paradigma a ser seguida por todos os tribunais. É a derrota da teoria da tolerância zero, copiada acriticamente do modelo norte-americano, que superlota as prisões dos Estados Unidos sem resolver a questão da criminalidade.

Ao enxergar as motivações do indivíduo que furta por necessidade, sem que isso se traduza necessariamente em periculosidade social, os juízes do Supremo reintroduzem os direitos da pessoa humana na pauta nacional. A sociedade brasileira passará a refletir melhor o quanto as pessoas do povo ainda precisam lutar para efetivar o direito à vida, à alimentação, à segurança, à moradia. O Brasil verá que ainda caminha no reino da necessidade, muito longe ainda do reino da liberdade. Trancar os pequenos ladrões nunca poderá mudar essa realidade desigual, mas apenas agravar a situação de violência.

Friso que a decisão não é uma apologia ao furto. Furtar constitui ato condenável, do ponto de vista legal, moral ou ético. Mas o STF deu um passo importante em direção à igualdade, corrigindo a dureza da lei. O direito é um bem essencial, mas se torna injusto à medida que se enrijece e se resume à letra fria dos códigos. Além de abrir brecha às injustiças, do ponto de vista social-construtivo, a dureza demais na sentença pouco contribui para a reabilitação do pequeno delinquente. Em Ética a Nicômaco, Aristóteles refere-se à equidade como a humanização do direito, porque prevê a adequação da Justiça às necessidades sociais e às circunstâncias das situações distintas.

O novo entendimento do Supremo, que se alinha ao raciocínio aristotélico, pode ser o início de um processo de transformação na sociedade, com a sobreposição da Justiça construtiva face à punitiva, culminando no fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

Fonte: Correio Braziliense

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