Correio Braziliense: Encontros para selar a paz

Nova tendência do Judiciário brasileiro estimula infratores e vítimas a buscar o entendimento, independentemente do resultado do processo. No DF, Fórum do Núcleo Bandeirante é pioneiro

Um corte no supercílio, hematomas pelo corpo e o medo constante de novas agressões. Os socos e pontapés que o estudante Tiago Tinoco Fonseca, 19 anos, levou durante uma briga na saída de uma festa de formatura, em 2007, deixaram marcas profundas em sua vida. Os responsáveis foram condenados pelas lesões, mas Tiago continuou traumatizado pela violência. No mês passado, essa sensação de insegurança ficou no passado. Vítima e agressores se encontraram de novo, na presença de advogados, psicólogos e familiares de ambas as partes. Depois de muita conversa e conciliação, Tiago pôde, enfim, perdoar seus algozes. “Senti um alívio enorme, hoje sou outra pessoa. Vivia com medo de sair, encontrar com eles em alguma festa e apanhar de novo. Durante a mediação, até trocamos apertos de mãos”, relembra o jovem.

A experiência que mudou a vida do estudante faz parte de um projeto piloto do Judiciário brasiliense, que promove encontros entre vítimas e ofensores para cessar definitivamente as causas de conflitos e de atos de violência. A Justiça Restaurativa, como é chamada a iniciativa, faz com que as pessoas envolvidas dialoguem sobre o crime e suas consequências, buscando sempre uma reparação dos danos causados. A meta é reverter os prejuízos emocionais e morais, não apenas os materiais.

O chacareiro Antônio José envolveu-se, em 2003, numa disputa por terras com um vizinho: somente a Justiça Restaurativa encerrou o conflito

Apesar de comum em outros países, como a Nova Zelândia e o Canadá, a iniciativa ainda é embrionária no Brasil. O projeto existe apenas em tribunais de São Paulo, Porto Alegre, Curitiba e Distrito Federal. Aqui, o Fórum do Núcleo Bandeirante é pioneiro em aplicar as técnicas da Justiça Restaurativa. A iniciativa teve apoio financeiro e institucional do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).

Das experiências atuais, apenas o programa de Porto Alegre aceita casos de crimes graves, como homicídio. No DF, somente os acusados de crimes de pequeno potencial ofensivo podem participar das sessões de mediação da Justiça Restaurativa. Os encontros não acontecem em audiências formais nem têm a presença de um juiz. O objetivo é que profissionais especializados, como psicólogos, atuem na busca pelo entendimento, dentro da esfera do Judiciário.

Agredido em 2007, Tiago venceu o trauma ao conversar com os infratores
O juiz Asiel Henrique de Sousa, da 1ª Vara de Juizado Especial do Núcleo Bandeirante, está à frente da iniciativa pioneira no DF. Ele explica os princípios do programa. ” Justiça Restaurativa reconhece que o crime, além de ser a violação da lei penal, é também a violação da integridade das relações. A proposta é dar ao acusado a oportunidade de reparar o dano que ele provocou”, esclarece o magistrado.

“As pessoas afetadas pelos crimes e as pessoas próximas a elas experimentam profundo abalo emocional e uma sensação de insegurança. Com a Justiça Restaurativa, o acusado de um crime é levado a se confrontar com o que ele fez e com o dano que provocou”, acrescenta Asiel. A participação nas mediações tem que ser voluntária e confidencial. Tanto as vítimas como os infratores precisam aceitar a inclusão no programa. Tudo o que acontece nos encontros não é revelado nem mesmo aos juízes. A participação dos advogados das partes é facultativa. O perdão e a compreensão mútuas são um dos objetivos dos encontros, mas isso não anula uma eventual condenação pelo crime cometido.

Congresso
Essa nova tendência do Judiciário brasileiro atrai cada vez mais interesse. Tanto que a Justiça Restaurativa foi um dos principais assuntos discutidos durante o Congresso Internacional Psicossocial Jurídico. O evento reuniu, na semana passada, profissionais do Brasil e do mundo durante quatro dias de encontro, no Centro de Eventos Brasil 21. As palestras sobre o assunto atraíram advogados, psicólogos e assistentes sociais interessados em compreender melhor a aplicação dessas novas práticas.

Um dos participantes do congresso foi o juiz Egberto Penido, coordenador do Centro de Estudos de Justiça Restaurativa da Escola Paulista da Magistratura e um dos maiores especialistas no assunto. Em sua palestra, ele destacou que o castigo não é a única – nem a melhor – forma de gerar reflexões. “A Justiça Restaurativa representa uma cultura de paz. O grande desafio é dar respostas à violência sem retroalimentar essa violência”, explica o especialista. “O sistema de Justiça atualmente não satisfaz a vítima nem repara o dano sofrido”, acrescenta Penido.

A adoção de programas como a Justiça Restaurativa é estimulada por entidades ligadas a magistrados e pelo governo. O coordenador de Democratização do Acesso à Justiça da Secretaria de Reforma do Judiciário (entidade do Ministério da Justiça), Marcelo Sgarbossa, disse, durante o Congresso Internacional, que o projeto é uma das políticas divulgadas pela pasta. “Estamos estudando a criação de um manual que servirá de referência para a implementação desse projeto em nível nacional”, afirmou Marcelo.

A Justiça Restaurativa trouxe paz à vida de Antônio José dos Santos, 46 anos. O chacareiro, que tem uma propriedade no Núcleo Rural Córrego da Onça, próximo ao Park Way, brigava com o vizinho desde 2003. Os desentendimentos começaram por conta da utilização de uma mina – água e acabaram virando uma disputa por terras. “Ele disse à polícia que estávamos fazendo ameaças de morte e, então, eu e meu irmão entramos na Justiça alegando invasão de propriedade particular”, explica Antônio José.

O chacareiro conseguiu uma sentença favorável, mas o desconforto e os conflitos continuavam. Até que a briga foi parar na Justiça Restaurativa. Antônio e o dono da chácara vizinha, além de parentes, participaram de mediações. Representantes do Judiciário foram ao local para chegar à fronteira entre as duas propriedades e, assim, compreender melhor o problema. “Essa briga toda foi muito desgastante emocionalmente. Com a ajuda de psicólogas, conseguimos nos entender”, afirma.

Como funciona a Justiça Restaurativa

# O princípio básico do programa é promover o encontro entre a vítima e o acusado para que o ofensor tenha a oportunidade de reparar o dano causado.

# O perdão e a conciliação não afastam uma eventual condenação. A ideia é apenas cessar as causas dos conflitos e da violência, evitando que eles se repitam.

# O programa pioneiro funciona oficialmente apenas no Fórum do Núcleo Bandeirante. Mas alguns juízes de outras áreas já começaram a aplicar essas técnicas.

# As sessões de mediação acontecem no fórum, com a participação de psicólogos e assistentes sociais, além das duas partes envolvidas. Familiares das vítimas e dos agressores também são bem-vindos.

# A participação tem que ser voluntária. As duas partes precisam concordar em participar dos encontros.

# As sessões de mediação são confidenciais e não influenciam nos julgamentos. Nem mesmo os juízes participam dos encontros.

# No Distrito Federal, as práticas da Justiça Restaurativa são aplicadas apenas para crimes de pequenos potenciais ofensivos. Mas em outras cidades, como Porto Alegre, acusados de crimes graves, como homicídio, podem participar de mediações.

Fonte: Correio Braziliense

🔥20 Total de Visualizações