Correio Braziliense: Direito à nomeação e profissionalização do concurso público

Em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal, fortemente fundamentado nos “deveres de boa-fé e incondicional respeito à confiança dos cidadãos”, alterou sua jurisprudência de longa data, passando a entender que a aprovação dentro do limite de vagas definido no edital gera para o candidato aprovado em concurso público mais do que expectativa de direito — gera direito subjetivo líquido e certo à nomeação, exceto em situações excepcionalíssimas, supervenientes, imprevisíveis e graves, judicialmente sindicáveis se alegadas.

De alternativa às vicissitudes da iniciativa privada, a via rápida do concurso público a bom padrão de vida tornou-se a primeira opção profissional de milhões de brasileiros em vista da estabilidade, melhor remuneração inicial e condições privilegiadas de aposentadoria e pensão. Um case sociológico que suscita investigação.

Às tradicionais alternativas profissionais, somou-se a de ser servidor público. Famílias que há alguns anos cogitavam ver os filhos na administração pública somente na magistratura ou no Ministério Público hoje se mobilizam para dar-lhes o apoio necessário ao ingresso em outras carreiras.

O concurso público tornou-se empreendimento profissional. Não se compadece mais com o amadorismo e o voluntarismo. Quem escolhe essa alternativa precisa dedicar-lhe forte engajamento emocional e persistente e planejada preparação. Nesse caminho, empregos serão abandonados, rotinas familiares serão refeitas, momentos de lazer relegados, maternidade e paternidade postergadas. Muito tempo e recursos financeiros preciosos serão investidos no projeto.

Do lado da administração, o concurso público é um processo administrativa e financeiramente oneroso, conduzido para resolver o complexo problema de avaliar milhares de candidatos, sob os princípios da isonomia e impessoalidade, para escolha das pessoas certas para os lugares certos.

Em torno dos concursos públicos formou-se um setor econômico bilionário, de multifacetado empreendedorismo (de livreiros a candidatos), que reclama a proteção dos tribunais contra abusos decisórios e falhas de organização.

A relevância dessa questão pode ser sentida na leitura do quase sempre esquecido e negligenciado art. 169, § 1º, da Constituição Federal, que condiciona a admissão de pessoal à existência de autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias e de dotação orçamentária prévia e suficiente para suportar as novas despesas, o que significa submeter ao crivo do Poder Legislativo a necessidade e o planejamento financeiro de novas admissões.

Não pode o poder público, portanto, movimentar milhares de cidadãos ao redor das promessas que faz ao chamá-los a disputar determinada quantidade de vagas para, posteriormente, decidir se irá ou não nomear os aprovados, segundo alegadas conveniências de momento.

A mudança de orientação do STF conforma-se à evolução sociocultural da sociedade brasileira e pacifica entendimento que estava em franca consolidação no Superior Tribunal de Justiça. Contudo, essa decisão não terá encerrado o debate se a administração, em vez de assimilar sua ratio decidendi e lançar editais com quantificação verdadeira das admissões que irá realizar, procurar evadir-se do cumprimento do dever de nomear reduzindo ao mínimo as vagas fixadas no edital. Se agirem dessa forma, as administrações submeterão os candidatos a insegurança maior do que a decisão do Supremo visou remediar, o que converteria a decisão numa vitória de Pirro da cidadania. Se agirem assim, imputarão ônus desnecessários e gastos inúteis ao Estado brasileiro, ao incitarem candidatos a levarem aos Tribunais novas demandas judiciais.

Os concursos públicos precisam de melhor governança. Requerem sistemático e permanente aperfeiçoamento normativo e operacional, com objetivos de alçar a transparência dos procedimentos ao nível mais alto possível, garantir a isonomia e assegurar aos que pretendem se lançar em empreendimento de tal envergadura que os resultados que todos alcançarão serão fruto dos próprios esforços e da legítima disputa segundo regras isonomicamente formuladas, e que não verão suas expectativas e direitos frustrados por direcionamentos e favorecimentos imorais, cada vez mais sutis, havidos nos pontos de menor ou nenhum controle, o que ainda ocorre.

Aguardemos o desdobramento da novel decisão do STF antes de afirmarmos que se encontra superada mais uma etapa do longo processo histórico de afirmação do princípio do concurso público, o qual constitui um “direito fundamental expressivo da cidadania”, na expressão da ministra Cármen Lúcia.

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