Correio Braziliense: O destino das cotas no país

STF inicia amanhã debates que vão embasar decisão sobre reserva de vagas nas universidades

Nesta semana, 38 entidades e autoridades vão ajudar 10 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a decidirem o destino dos programas de política de ação afirmativa das universidades federais que beneficiam 50 mil alunos em todo o país. Contestado no STF pelo partido Democratas, o sistema de cotas da Universidade de Brasília (UnB) deve ter seu futuro definido ainda este ano. Embora a ação de Descumprimento de Preceito Fundamental seja direcionada apenas à UnB, a decisão a ser tomada pela Corte vai valer para as 68 instituições de ensino superior que adotem algum tipo de cota racial em seus vestibulares.

Para subsidiar a decisão do STF, o ministro Ricardo Lewandowski, relator da ação, selecionou especialistas para apresentarem argumentos contra e a favor das cotas em audiência pública que acontece entre amanhã e sexta-feira. Ao todo, se inscreveram 252 debatedores para participarem da audiência como amici curiae — amigos da corte —, mas apenas 38 foram selecionados. Os convidados para o primeiro dia de debate são em sua maioria favoráveis à política de cotas raciais. Entre eles estão o ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, e o professor Carlos Mares, representante da Fundação Nacional do Índio (Funai). Ainda amanhã, serão ouvidos os posicionamentos contrários às cotas, defendidos na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental pela procuradora do DF e advogada do DEM, Roberta Kaufmann.

A parcela dos debatedores que se posiciona contra as cotas está concentrada entre pesquisadores, médicos, advogados, autores e professores que consideram a medida inconstitucional e pouco eficiente. Já os órgãos do governo e representantes das universidades federais são a favor — caso da própria Universidade de Brasília.

Favorável às cotas, o estudante de gestão de políticas públicas, Daniel Garcia Dias, 26 anos, disse que o vestibular é visto pela população como um compromisso apenas individual, mas, para ele, o objeto é ainda mais amplo. “O modelo hoje favorece a elite branca do país, independentemente da questão financeira, e prejudica o negro. Então, uma das formas de repensar isso é ter mais negros dentro do nível superior”.

Já o estudante de direito André Maia, 24 anos, é contra as cotas. Segundo Maia, os defensores do sistema partem da ideia de que são sempre os negros que sofrem o preconceito, mas, como destacou, a sociedade não pode se basear nessa atitude preconceituosa realizada por uma parte pequena da população. “Estamos chegando a um grau de barbárie em que vamos adotar parâmetros preconceituosos, que não são de toda a população, para tornar parâmetros estatais”, explicou.

No Rio, os pioneiros

A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) foi pioneira na adoção do sistema de cotas, em 2003. Cinco anos depois, foi sancionada a Lei Estadual nº 5.346/08, que estabelece as normas de ingresso em universidades do estado. A legislação prevê a reserva de 20% das vagas para negros e indígenas, 20% para alunos de escolas públicas e 5% para portadores de necessidades especiais e filhos de bombeiros e policiais mortos em serviço — desde que os candidatos sejam carentes.

Em 2009, o deputado estadual Flávio Bolsonaro (PP-RJ) ingressou com uma ação direta de inconstitucionalidade contra a lei. Mas a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) foi pela manutenção do sistema. De acordo com a sub-reitora de graduação da Uerj, Lená Medeiros de Menezes, as cotas já foram absorvidas pelos estudantes. Hoje, 3.291 são matriculados por cotas raciais.

A briga na Justiça pelas vagas reservadas a cotistas — 10% raciais e 20% para alunos de escolas públicas — ainda é acirrada na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Candidatos que obtêm notas altas pelo sistema universal e não são aprovados por conta da reserva de vagas ingressam com cerca de 100 ações individuais ao ano.

Ponto crítico

O sistema de cotas deve ser mantido e ampliado nas universidades brasileiras?

SIM

Nelson Inocêncio

“Não há novidade nenhuma de que a nossa sociedade foi construída a partir de modelo injusto, pois contemplou alguns segmentos e desconsiderou vários outros. É impossível dizer que as oportunidades aqui no Brasil são as mesmas para os brasileiros. Os indicadores, na prática, mostram que somos uma sociedade desigual, inclusive no que diz respeito à população negra. Então, a intenção da política de cotas, por exemplo, é minimizar o dano provocado por esse modelo injusto de inclusão, que foi a base da formação da sociedade. Quando a gente trabalha com indicadores sociais, nos damos conta de que o negro é a maioria dos excluídos. Estamos num estado democrático de direito, mas a democracia se constrói a todo tempo e quando falamos das relações raciais, ela não demonstra ser democrática. A gente vê isso na representação dos brancos e a ausência de negros no poder. Os espaços privilegiados são ocupados 90% pelos brancos. E por que defender as cotas? Pois a educação é um caminho para formar cidadãos e a universidade pública também vive essa contradição, que é a de não conseguir contemplar os excluídos de um modo geral e por consequência não conseguir incluir a população negra de maneira, no mínimo, satisfatória. Então, a ideia da cota é a formação de uma elite negra no Brasil. Poucos ficaram incomodados com a formação da elite branca, não entendo esse desconforto com a elite negra. Vale lembrar também que quando falamos de negros e brancos não tem nada a ver com a visão sobre genética. A discussão que o movimento negro trava é em torno da representação das pessoas que são vistas como negras. A única intenção é visar uma sociedade mais democrática”.

Coordenador do núcleo de estudos afro-brasileiros da UnB

NÃO

Ibsen Noronha

“O meu ponto de vista se refere a um argumento recorrente dos que estão favoráveis às cotas, que é a dívida histórica que se tem para com os negros. Ora, quando se fala em dívida histórica se pensa na escravidão e nós temos que estudar a escravidão com um certo detalhe, pois ela é vista de maneira superficial. Isso porque, nós temos negros livres no Brasil desde o século 16. No século 17 aumentou esse número, inclusive alguns se tornaram nobres, por exemplo, na Batalha de Guararapes. No século 18 também temos muitos negros livres e no 19, tendo em vista que as leis de abolição da escravidão foram várias, aumentou esse número, a ponto de em 13 de maio de 1888 termos apenas 5% da população brasileira de escravos. Ora, se nós racionarmos historicamente, esses negros livres ingressaram na vida social e muitos tiveram escravos. Isso é comprovado e documentado pela história, de maneira que agora o meu raciocínio é o seguinte: se nós damos cotas hoje baseadas na raça, nós temos o perigo de cometer uma grande injustiça, pois sabemos que podemos dar uma vaga baseada na raça para um descendente de escravocrata. E nós vamos negar vaga para um branco que pode ser imigrante recente, por exemplo, um polonês, italiano ou ucraniano, que não tem nada a ver com esse problema histórico e vão ser lesados por ter uma cor. Além disso, existe um princípio de direito que atravessou séculos, que é o seguinte: dar a cada um o que é seu e não lesar a ninguém. Se nós lesamos alguém com essa política, não podemos considerar que há justiça”.

Professor de história do direito do Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb)

Fonte: Correio Braziliense

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